Cami Talks: Vamos falar sobre saúde mental na moda?

Quando Simone Biles se retirou das finais femininas individuais da ginástica, o tema saúde mental ganhou as capas de jornais, a TV, revistas, sites e redes sociais e nos obrigou a olhar para o nível de stress e pressão que atletas de alta performance sofrem. Além de preparo físico, equilíbrio e força mental, também é necessária uma auto confiança inabalável, treinos diários pesados e uma habilidade fora do comum que os destaca entre os demais. Quando assistimos, estupefatos, meninas como Biles e Rebeca Andrade em ação, nos deixamos cegar pelo encantamento, alheios aos bastidores dessa conquista. Elas vivem em um nível de entrega que é tudo ou nada.

“Para aqueles que praticam esportes hoje em dia, as pressões são insustentáveis em meio a um tipo infinitamente hostil de experimento social não regulamentado”, disse o jornalista Barney Ronay, em um artigo para o The Guardian. Essa frase dele me chamou muita atenção porque mostra que todos nós fazemos parte desse experimento. O caso Biles foi muito importante pra comunidade esportiva assumir o que, literalmente, está em jogo.

E na moda? Nós também temos nossos talentos de alta performance e já vimos o preço que eles pagam por serem continuamente brilhantes e estarem sempre um passo a frente do resto do mundo. A cada lançamento, assim como as meninas da ginástica, nós exigimos que eles sejam inovadores e surpreendentes, nada menos do que isso.

Vimos dois gênios desmoronarem em meio a uma pressão sistêmica e insuportável – um deles sem volta. Passamos anos hipnotizados pelas criações de Alexander McQueen e John Galliano, fascinados pela inquietude e impressionante habilidade criativa e técnica sem nunca nos questionar o nível de stress que eles sofrem. Afinal de contas, “eles são muito bem pagos por isso”. Bem, em muito casos, não há dinheiro e sucesso que paguem o dano que viver nesse nível de performance causa à nossa saúde.

Helmut Lang e Martin Margiela saíram da moda para nunca mais voltar. Raf Simons deixou um dos cargos mais cobiçados de direção criativa no mundo em troca de sanidade mental, tempo, maior controle sobre os processos e satisfação pessoal. Virgil Abloh falou publicamente sobre o seu burn out e que precisava diminuir o ritmo de trabalho, que na época incluía oito voos internacionais em uma única semana. Oi??? Todos esses acontecimentos ajudam a chamar a atenção para a dinâmica prejudicial do sistema da moda e o impacto que tem na nossa saúde.

Se estamos falando de transformação, de uma indústria mais justa, humana e sustentável, essa questão também tem que ser levada em consideração. É possível rever o que alto rendimento significa na moda? É possível ressignificar a pressão por resultado? Existe outro caminho? Uma alternativa onde a marca não ganhe com o colapso mental de seus funcionários?

Vale lembrar que essa questão não existe apenas para os medalhistas de ouro da moda. Ela também percorre por todas as camadas do sistema com milhões de funcionários obrigados a suportar ambientes tóxicos e situações cotidianas que afetam sua saúde emocional e psicológica. Comentários depreciativos sobre aparência ou competência (muitas vezes feitos na frente de outras pessoas), equipes em que as pessoas são jogadas umas contra as outras, espaços governados pela vaidade onde abusos de autoridade e poder correm soltos. Quem já não passou por uma dessas situações?

Essas experiências certamente também se estendem às modelos, que vivem situações de stress desde muito jovens, além de estarem expostas a assédio e abuso sexual. “Modelos foram por muitos anos considerados(as) objetos de cena, chegaram a ser chamados de ‘cabides’”, lembra Liliana Gomes, fundadora da agência Joy Model. Eles são afetados pela própria situação da profissão, de se expor, sendo jovens, em uma ocupação nova, muitas vezes sozinhos viajando o mundo, onde estão constantemente sendo avaliados, julgados e escolhidos”. Liliana conta que mantém um psicólogo para atendimentos gerais e para orientação individual a cada modelo.

A moda tem um lado extraordinário e apaixonante que fala sobre criatividade, coletividade, beleza, pessoas, inovação e descobertas, mas ela também pode ser um lugar altamente opressivo (um “experimento social não regulamentado”?). Frequentemente, é apenas o ângulo bonito que chega até a gente e causa tanto desejo e interesse.

“Um milhão de garotas se matariam por esse trabalho”. A frase que a gente ouviu em O Diabo Veste Prada virou um meme que brinca com o fato de você estar num local de trabalho tóxico, bem distante daquele que você sonhou quando decidiu trabalhar com moda.

A moda está intrinsecamente ligada à saúde mental, pois ela acaba afetando a forma como nos percebemos e como os outros nos percebem. E sendo um lugar historicamente excludente, mexe diretamente com a nossa auto estima e com a nossa facilidade ou dificuldade de pertencer. Esse assunto então tem diversas ramificações, que vão do burn out à inclusão, passando pelos trabalhos de alta performance.

Essas questões precisam ser adereçadas e não podem mais ser um tabu. Empresas precisam oferecer um espaço onde as pessoas são valorizadas, limites são respeitados e abusos são relatados em um ambiente seguro. Vemos falas ou ações pontuais durante o Dia Internacional da Saúde Mental, mas que muitas vezes não saem do Instagram.

Há empresas que já oferecem programas de apoio psicológico aos seus funcionários enquanto outras parecem não entender que, quanto melhor uma pessoa estiver, mais eficiente ela será. A produtividade precisa vir do bem estar e não do medo.

FONTE: FFW

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